Análise Psicodramática de um conto, Corcel afogueado, ou o Périplo de Orosmindo de Artur Ribeiro Cruz.

 

Por Sérgio Serrano.

Arthur Ribeiro Cruz nos conduz de forma deliciosa no universo do personagem Orosmindo Abdias dos Reis e de seus vocábulos clássicos resgatados de nossa língua materna, muito bem colocados na narrativa desse texto*. Resgatados leia-se incorporados na história desse personagem e em todas as suas ações. Como ilustração dessa incorporação, pense no corpo de uma criança recém-nascida como uma folha de papel em branco. Ali estão contidos seus códigos neurofisiológicos entrelaçados pela herança complexa do DNA paterno e materno que definem suas características básicas, físicas e psicológicas, porém ainda uma folha de papel em branco. Scripts e roteiros ainda serão escritos sobre essa folha em branco.

Como o personagem Orosmindo, que trazia na sua origem sócio-histórica scripts desde seu primeiro papel social de filho, passando por outros de irmão, neto, sobrinho, amigo e amante daquele punhado de mulher-dama da casa de tolerância de Dona Abadia, que formaram seu roteiro de vida expresso na sua peculiar forma de se comunicar, assim também será com qualquer outro ser humano.

Por exemplo, na obra de Érico Veríssimo, O Tempo e o Vento dividida em três partes: O Continente, O Retrato e o Arquipélago, temos, nos seus dois últimos volumes, o personagem Dr. Rodrigo Cambará, descendente do seu homônimo famoso, um certo capitão; formado em medicina na capital do estado do Rio Grande do Sul, início do século XX. Quando Dr. Rodrigo retorna da cidade do Rio de Janeiro, onde exerceu seu mandato de deputado federal, para o casarão da família na cidade de Santa Fé (RS), é recebido com estranheza pela família e habitantes, pois sua expressão mudou, tanto nas roupas como na linguagem, descrita de forma sutil pelo autor da obra quando se refere a troca que o personagem fez do pronome tu pelo pronome você.

Parafraseando uma das famosas frases de Jesus de Nazaré (Mateus 6:34): O que a “boca fala” quando o “coração está cheio”?

Mas, voltemos ao coração dessa história, Orosmindo e seus principais personagens coadjuvantes: a irmã mais nova Geralda, que o encaminhou para a cidade de Sertãozinho, estado de São Paulo pelos idos de 1989; temos também “seu” Júlio, filho caçula da rica família Chiarelli e seu patrão no sítio localizado na região da referida cidade, transformado em senhor com redobrado esforço para disfarçar sua leviandade ; sua “arranjada” esposa, a senhora Lúcia Sampaio ou Lucinha, assim chamada talvez por aparência tão meiga, singela e carinhosa tanto com gente como com os animais, senhora para se ajustar ao “arranjado casamento”, mas pequenina luz para brilhar suas pequenas virtudes naquele pequenino espaço rural; filha única do promotor público Dr. Sampaio, austero no seu papel profissional, mas libertino enquanto parceiro de lazeres do irmão mais velho Rodrigo do “seu” Júlio, e o grande magnata dos ricos negócios da usina de álcool da família Chiarelli, articuladores da urdida trama que resultou no casamento do referido casal. Claro, não poderíamos deixar de citar os amigos de bocha de Orosmindo, entre eles seu principal informante, o Rubim, ardiloso nas falas e tramas.

Aqui temos traçado o cenário ou palco principal de Orosmindo e sua rede sociométrica ali estabelecida com alguns dos seus principais personagens.

Voltemos ao seu périplo à luz dessa análise.

O primeiro cenário é a cidade de Rio do Prado, extremo norte do estado de Minas Gerais, fronteira com o estado da Bahia, onde Orosmindo compartilha suas origens em uma família de nove filhos educada na disciplina de “ponta do reio” pelo seu pai. Afogueado pela revolução hormonal de sua adolescência resolve ter sua primeira experiência sexual em um bordel, arriscando ser objeto de risos, pois contava apenas com doze anos de idade. Porém, usa dessa situação para responder de forma espontânea e criativa e assim seduzir as mulheres para satisfação do seu voraz desejo, apropriando-se, a partir daí, da arte de amolecer os corações femininos. Decorridos alguns anos, Orosmindo recebe o chamado diretivo e convocatório de sua irmã mais velha Geralda para vir de mudança para a cidade de Sertãozinho, noroeste do estado de São Paulo. De posse dos seus apetrechos morais e materiais, tão bem estabelecidos pela sua conserva cultural, base dos scripts iniciais dos seus primeiros papéis sociais, filho e irmão de nove outros, alicerçados na figura diretiva e representativa de seu rigoroso pai, parte para uma longa viagem de 1200 quilômetros aquecido na sua imaginação e fantasia pelo cenário que lá o aguardava: trabalhar como caseiro em uma bela propriedade rural da rica família Chiarelli, plantadores de cana de açúcar e usineiros de álcool, cuja irmã, Geralda, já era cozinheira de mão cheia na mansão urbana da citada família.

Qualquer projeto que se insira na vida de um sujeito, enquanto seu autor, nasce e desenvolve em sua dimensão imaginária, alimentado pelas suas emoções e desejos, estimulados pela sua realidade concreta e pessoas com quem interage, que povoam sua fantasia transformando-se num projeto dramático ou sociométrico latente. Drama do grego δράμα (drâma), que significa ação ou coisa feita. Sociometria de sociu, companheiro ou grupo, de metrum, ambos derivados do latim, unidade de medida aqui estabelecida como critério de escolha qualitativa. Esse projeto latente, que teve como base seu histórico familiar em Rio do Prado alimentado pelas palavras promissoras de sua irmã Geralda, servirá como preparação ou aquecimento inicial para a viagem de 1200 quilômetros de Orosmindo até Sertãozinho, quando passamos para o segundo cenário de sua aventura.

Vale ressaltar que o projeto dramático latente cultivado na imaginação e fantasia desse personagem é marca registrada de todo ser humano, do nascimento até sua morte, fase por fase: infância, adolescência, juventude, maturidade e idosidade. Para cada uma dessas fases o sujeito, enquanto autor e ator de seu projeto, procura na realidade social seus pares interpessoais ou egos auxiliares, de preferência criteriosamente escolhidos, para concretizá-lo em um projeto dramático manifesto. Quase sempre os resultados da manifestação desse projeto não serão iguais ao latente, gerando frustrações e consequentes alterações emocionais e comportamentais, apontando necessariamente para uma preparação mais profunda e conscienciosa do seu autor (sujeito). Nada que um processo psicoterápico comprometido possa ajudar a organizar e direcionar.

Suficientemente preparado para entrar nos domínios da família Chiarelli¹ , pois já tinha informações ou roteiro suficientes para saber qual papel lhe caberia naquele grupo, liga para o telefone fornecido pela sua experiente auxiliar irmã mais velha Geralda, que passou os detalhes do casal para quem iria trabalhar, o caçula da família, Júlio Chiarelli, já arranjado e casado com Lúcia Sampaio Chiarelli, armação essa fruto de um acordo muito bem costurado entre o Dr. Sampaio e Rodrigo Chiarelli, para colocar um fim nas aventuras sexuais do tresloucado irmão que, mesmo com sua conhecida ejaculação precoce, resultou numa inesperada gravidez de uma anônima moça, de uma anônima família da classe trabalhadora que, de posse de uma certa quantia de dinheiro dos Chiarelli, mudaram para o Paraguai. Orosmindo vai trabalhar no sítio, sede da fazenda do agora “seu” Júlio e esposa, totalmente ocupado pelo canavial arrendado, mas com um oásis no meio da propriedade com muitos bichos, plantas e frutas para distração de Lucinha, assim chamada provavelmente pelos íntimos da família, e deixar Julinho, talvez chamado também pelos íntimos ou tamanha sua pequenez, montar no seu jet ski a brincar na grande represa da propriedade, já que estava proibido de montar em qualquer outra atividade que resultasse em mais despesas a sua família.

Esse cenário do qual Orosmindo passa a fazer parte como terceira pessoa do grupo familiar representado pelo casal arranjado, remete ao texto histórico de Alfredo Naffah Neto, hoje psicanalista winnicotiano, quando transitava pelas aragens do Psicodrama sob o título O Drama da Família Pequeno Burguesa (NAFFAH, 1980). Ali nos mostra que qualquer movimento de transformação social, leia-se sempre relacional e grupal, subjaz rigidamente controlado por funções fixas estabelecidas pela conserva cultural vigente representada por uma ordem instituída, controlada pela classe dominante que age exclusivamente em nome dos seus interesses particulares como se fossem os melhores para aqueles por eles controlados².

Esse é o Drama que se descortina diante de Orosmindo na medida em que seu relacionamento com Lúcia ou Lucinha, chamada por ele, passa a fazer parte do seu tempo e seu lugar, aquele do Rio do Prado transportado 1200 quilômetros no seu corpo, nas suas ações, nos maneirismos das suas falas e afetos. Ou seja, Lucinha passa a ser sua companheira de projeto dramático latente, talvez na imaginação do caro leitor, conjugados numa incendiária e apaixonante relação amorosa, já que Orosmindo se declarava, desde adolescente, um entusiasta pelo gozo de prazeres com mulher. Mesmo que com toda a torcida dos leitores para uma relação de Amor Eros, a parceria deles atravessa sim as dimensões do Amor Philos, a seguir retratada.

Quando o Drama de Lucinha passa a fazer parte do tempo e espaço de Orosmindo, obviamente bem dirigido e articulado pelas informações e sugestões, ou seriam subversões?, do velho Rubim, cria-se um novo espaço de encontro entre eles, aquecidos agora de forma específica para um contexto, arranjado cenicamente pelo grande quintal de todas as crias do sítio, bem como o lindo pomar seguido pela baia, residência do querido mangalarga Reluz; onde compartilhamentos de saberes rurais de Mindo (alcunha dada a ele por Rubim) entrecruzam com a audição delicada e meiga de Lucinha, abrindo aqui um canal seguro para confissões de sonhos não realizados, presos na sua imaginação, possibilitando a pergunta que não queria calar: “como alguém com tanto amor para dar a todos seres viventes daquele pequeno espaço não tinha ainda realizado a maternidade?”

Correndo dessa triste questão Lucinha refugia-se na residência de Reluz, seu primeiro e mais íntimo parceiro antes de Mindo, sem antes repreendê-lo por tal atrevimento.

Mindo porém insiste, tal qual a personagem Sherazade, dos contos das Mil e Uma Noites reprisado em uma crônica por Rubem Alves, teólogo e psicanalista já falecido, em seu livro O Retorno e Terno, quando aceita o desafio de casar com o ciumento Sultão, ressentido de profunda amargura pela traição de sua primeira esposa, resolve desposar com as virgens do seu reino para depois matá-las no dia seguinte às núpcias. Para escapar de sua morte certa Sherazade começa a contar histórias românticas, fantasiosas, heroicas para o Sultão e assim a noite vai madrugada adentro. Ao raiar do dia e da fatídica execução o Sultão pede para Sherazade permanecer ao seu lado, pois gostaria de ouvir mais histórias de sua adorável e meiga voz. Alves termina essa crônica com a seguinte afirmação: o ouvir é feminino e o falar é masculino, pois as palavras quando bem ditas penetram os ouvidos com tal prazer e alegria que mil e uma serão noites a seguir. Alves também, a partir dessa mesma história, lembra-nos uma frase de Nietzsche: “Que só existe uma pergunta a ser feita quando pretende se casar: ‘continuarei a ter prazer em conversar com essa pessoa daqui a 30 anos’.”

Pois assim chega-se ao clímax dessa história, diante da insistência amorosa, acolhedora e fraterna de Mindo, ajoelhado aos seus pés: Lucinha compartilha a sua secreta história com Júlio, que não deseja ter filhos e assim determina no uso de seus poderes de classe opressora que a todos controla naquela região, inclusive o seu pai, que ela use contraceptivos mesmo sendo ele vasectomizado. Diante dessa revelação, Mindo, na mais bela, sensível e compreensiva função de ego auxiliar da agora protagonista Lucinha, coloca em suas mãos a necessária e catalisadora questão: “Acaso tu não tens boca e asas pra fazer ninho em outras paragens?”

O inesperado desfecho deflagrado por essa pergunta não vem da protagonista Lucinha e sim do seu principal antagonista Júlio, que em altos brados, confiante e em pleno uso dos seus poderes, ameaça fulminante Orosmindo.

Porém, entra em cena o primeiro e íntimo parceiro de Lucinha, seu mangalarga Reluz, que tritura o corpo de Júlio com seus poderosos e enfurecidos coices que cai morto no chão da baia.

Tornado mártir dessa saga, pois para livrar Orosmindo, Lúcia, empoderada pelo seu protagonismo cria uma história, que Júlio decidiu ir alimentar o animal e soltá-lo sem ter qualquer intimidade com sua lida. Dito e feito, o animal sentiu cheiro estranho de invasor e deu-lhe com as patas, fulminando a praga instantaneamente. Sacrificado pelo seu desvario, Reluz transforma-se em mártir e herói da história de Orosmindo e Lucinha.

Quem diria, hein Orosmindo, que seu projeto imaginado e sonhado por 1200 quilômetros terminaria assim?

“Lucinha partiu além-mar, passar tempos com a tia que mora em terra chamada Andaluzia, escolhida vida em Sevilha.”

E o nosso querido Mindo, partiu para mais uma aventura quixotesca em terras paranaenses, curioso para conhecer a friagem local.

E você caro leitor, qual projeto dramático latente ainda povoa sua imaginação e fantasia, aguardando o ambiente e pessoas criteriosamente escolhidos para ser realizado?

Quantas distâncias ainda terá de percorrer para concretizá-lo?

O palco para a realização dos sonhos de Orosmindo e Lucinha foi aquele oásis fincado no meio de um canavial. Num lugar indeterminado, numa hora indeterminada, como diz Jacob Levy Moreno, criador do Psicodrama, em seu famoso poema Convite a um Encontro.

E como dizia ele também: “o palco é a extensão da vida”.

Onde está o seu palco? Seu lugar? Seu momento para realizar seu projeto latente?

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¹ Segundo cenário

² “Agem, cada vez mais, como marionetes regidos por um script cada vez mais sem tempo e sem lugar, ou seja, como atores inconscientes de peça desconhecida. É dessa forma que o movimento social, rodopiando em círculo vicioso, incapaz de transpor o desconhecimento da trama que o rege (devido a alienação), mascarado por uma série de papéis sociais, transforma-se em Drama.” Psicodramatizar, capítulo 2, p.16.

*Acesse aqui o Conto: Corcel afogueado, ou o périplo de Orosmindo- Artur Ribeiro Cruz

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICAS:

ALVES, R. O Retorno E Terno – Crônicas – Campinas: Papirus, 1995

CUKIER, R. Palavras de Jacob Levy Moreno – São Paulo: Ágora, 2002

FOX, J., O Essencial de Moreno – Textos sobre psicodrama, terapia de grupo e espontaneidade – São Paulo: Ágora, 2002

MARINEAU, R. F. Jacob Levy Moreno, 1889-1974, Pai do psicodrama, da sociometria e da
psicoterapia de grupo – São Paulo: Editora Agora, 1992

MORENO, J. L. Quem Sobreviverá? (Volumes I) – Goiânia: Dimensão Editora, 1992

NETO, A. N. Psicodramatizar – São Paulo: Ágora, 1980